Amador Ribeiro Neto
Conheci a poesia de Abraão Vitoriano quando estava selecionando poemas para a antologia “Engenho Arretado, poesia paraibana do século 21”, publicada pela Editora Patuá, de São Paulo, em 2022. Seus quatro poemas que constam do volume foram escolhidos entre os 4.223 recebidos pela chamada.
Não tive a felicidade de conhecer Abraão pessoalmente. Falamo-nos várias vezes por e-mail e whatsApp e um contato afetuoso logo se estabeleceu. Ficamos de nos ver e conversar no lançamento do “Engenho”. Quando discutia com os poetas antologiados a data do lançamento, ele me confidenciou que só não poderia numa das opções. Infelizmente foi a mais votada.
No dia 07 de janeiro de 2024 Abraão Vitoriano enforcou-se em seu quarto na cidade em que nasceu e vivia, Santa Helena, sertão paraibano. Tinha 35 anos. Era professor do Sistema Municipal de Ensino de Cajazeiras-PB, da Faculdade São Francisco da Paraíba e Supervisor Escolar do Sistema Municipal de Ensino de São João do Rio do Peixe-PB. Formado em Pedagogia e Letras, Mestre em Educação e em Letras. Deixou os livros de poemas Pétalas Raras (Motográfica, 2013), Estado de Graça (Penalux, 2014) e Cidadezinha Qualquer (Gramma, 2018).
Sua poesia concisa é a marca de um poeta que conhece o delicado ofício do fazer poético. Ela reflete o domínio do trocadilho que sabe surpreender o leitor com inteligência e alto grau de poeticidade, como exige a grande poesia, de poucos e raros.
Poemas de Abraão Vitoriano:
DEGREDO
eu isca
tu anzol
faltou nó
Em “Degredo” bastam meia dúzia de palavras para que se desenhe um poema com alta carga dramática pelo uso da ironia que, paradoxalmente, abre as asas para a irrisão. Recurso de um poeta que conhece profundamente os entremeios da linguagem e seus poderes de persuasão poética.
OFICINA A DOIS
minha língua
no teu céu
mel
Em “Oficina a dois” o erotismo desenha-se desde o título, numa aprendizagem ou cons(c)erto, donde a dubiedade, recurso fundante e fundamental de todo poema, banha o poema em delícias da rima adocicadamente sensual.
APOTEOSE
prefiro a fome
dos apaixonados
ainda que finde em dor
melhor que esse verso
já molhado
de amor
“Apoteose”, uma vez mais, joga com a antítese, e novamente, sem fraturar e explicitar o sentimento do amor – que, note-se, é apresentado na essência, sem adjetivação – em oposição ao “verso molhado”, quer seja, à expressão subjetiva exaltada desse sentimento.
NORMA MINHA
gritos
só no cio
“Norma minha” é outro poema de elogio à contenção sob a forma de concisão. O título ambíguo, que tanto abarca o nome da amada como um simples substantivo comum, abre para duas posturas no sexo: uma dirigida como etiqueta à amada e outra como norma de comportamento do eu lírico diante da vida. Um poema erótico bem humorado e com seis palavras – incluindo o título – é mesmo qualidade de um poeta que conhece muito bem o raro trabalho da “poiésis”. Pena ter nos dado adeus tão cedo. A partir de agora, sua obra é arte e vida para cada um e uma de nós.
Para o poeta Abraão Vitoriano fiz o poema “O poeta se partiu”, que transcrevo a seguir:
o poeta enforcou-se na tarde deste domingo quente
abafado
mal respirável
sertanejo
com o nó górdio
da mesmíssima corda
que tange os bois
e seus
mugidos melancólicos
no fim da tarde
o poeta não enxergava mais
horizontes
entre
as páginas de seus livros
nem
nas
folhas abertas
da janela de seu quarto
deitava-se na imensa cama
e chorava seco
como é seco o sertão
nestes tempos sem vento
sem uma asa de pássaro nas árvores intactas
árvores sem folhas
árvores só espetos dos galhos
furando a solidão
e
a dificuldade de ar do poeta
que
respirava fraco pra
não ferir o manto pesado
das horas
massa de cimento concretando
cada passo seu dentro da casa
arrastando-o-mandacaru-dos-pensamentos-
que-se-acumulam-ombro-acima
crescem|espinhos|desde|o|chão
vêm em
talhes de golpes secos
fecham a menor fresta de sua respiração
se rebocam até o teto da casa
descem dos ondes escuros da noite
súbitos dos cem sóis
em manhãs latejando
DESPREZOSESPEROS
o ar rarefeito do seu quarto abafado
por dias e dias e dias de incompreensão
verte em penumbra quatro paredes um teto um chão
uma caixa preta
parco e chumboso ar
sepulta cada vão e vão e
vão da janela morta
breu negrume sem destino ou distinção
peste praga e o peito do poeta
a lepra da dor dilacera estraçalha destroça
teu cor
po jovem e angustiado grande po
eta universal interior interiorano
teu pavor solitário
de ti
con
tigo mesmo po
eta quem ex
plica
nem tu
nem ninguém
há
havia de saber
e nunca
haverá
que eu sei
que teu povo sabe
uma dor um desespero um abismo um exílio um lugar nenhum um falta tudo uma imensidão de nadas um sem sentidos pleno e absoluto nonadas
até que
rápido
súbito
nesta parede de pedras
zapt!
olha!
uma fresta
uma fenda
uma frincha
tu
te
enfias
vai
te
retorcendo
segue
a
réstia
do
vão
vai
te
forçando
cabendo
aos
poucos
suando
lento
devagar
pouco
a
pouco
primeiro
a
cabeça
ombros
o
tórax
um
braço
outro
o
corpo
estirado
o
vão
pre
en
chi
do
por
teu
cor
po
e
agora
a
corda
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