Amador Ribeiro Neto
A poesia de Férias na Disney (Patuá, 2020) de cara quebra as pernas do leitor. Mesmo daquele já prevenido desde Alarido (2015), o nada convencional livro de estreia de Bruno Molinero, poeta que veio pra desafinar o coro, o solo, o duo, o escambau da poesia contemporânea brasileira.
Quando da publicação de Alarido, escrevi: Em Bruno Molinero a palavra colhida do jornalismo é reciclada por imagens e montagens estruturais que desconstroem a percepção viciada do leitor e inauguram um novo momento. Cada poema está no limite do prosaico. A poesia narrativa de Bruno Molinero é neo-épica, sem deixar de ser lírica. Ele estreia com marca própria. Que venha o novo livro”.
Seis anos se passaram para que Férias na Disney fosse lançado. Demorou, mas valeu a espera.
Se o livro inicial apostava mais no aspecto formal, com os poemas estruturados como depoimentos em primeira pessoas, versos curtos, ritmos acelerado, este vai num híbrido de poesia e prosa, centrado no comportamento da classe média paulistana.
Em ambos, a música é um ponto alto, tornando o texto até cantável, como se fosse um rap. Um rap de áspera crueza, humor mordaz e aguda ironia. Moral: O riso resultante é um envergonhado “caramba, mas é isso mesmo, poeta?”. Para logo depois gerar a indagação “e agora?” como na antinomia drummondiana.
Mas se na poesia do poeta mineiro o riso é corrosivo, na poesia Bruno Molinero o riso é demolidor. Seu alvo é a sociedade paulistana, brasileira, de um presidente que face a duas centenas de mil mortos pela COVID 19 ironiza “e daí?”. A indagação que indignou o país é agora um verso e passa a ser história literária da poesia contemporânea deste país.
Se na idade média a “verdade” era teológica, hoje ela é política, social, econômica. Assim, o poeta não se exime de usar a poesia como elemento de comunicação e utopia por um mundo melhor. Uma poesia que não aceita ser é líquida. Antes, firma-se como matéria concreta, feita de signos materiais ideológicos, produzindo elementos para consciência de classe.
No entanto, Bruno Molinero sabe que não vale a pena fazer da poesia um panfleto, nem discurso didático. Para ele, em primeiro plano está a linguagem. Por isso diferencia jornalismo de linguagem poética. Poesia é linguagem, todavia, carregada de significado, como bem claro deixou Pound em seu ABC da Literatura, um livro mais citado que lido.
Quanto ao engajamento da obra de arte, o poeta de Férias na Disney tem claro: “A arte militante tem uma chave de leitura só, deve ser lida daquela maneira para chegar ao significado que o autor quer. Eu queria que existisse no meu livro uma chave mais ampla de leituras”.
Por isso mesmo, em Férias na Disney, carrega sua linguagem de significado em alta voltagem. A classe média, que frequenta a Disney, é destrinchada nas profundas entranhas. Não em sentido econômico, mas como um “estado de espírito”, aquela que viaja pelas telenovelas, programas de auditório, reality show, big encenações religiosas, etc., veste-se e consome exageradamente, que perdeu a delicadeza do bom convívio social, que vota movido pelo ódio de classe, que menospreza a cultura, que promove aglomerações na pandemia, etc. – esse o público-alvo retratado pelo livro.
Ao poeta não escapam os fenômenos psicológicos e sociais desta classe. Os poemas surpreendem, ora pelo corte curto da lâmina dos versos, ora pela discursividade sem cerimônia do texto. Tudo na mais corrente coloquialidade.
E aqui, na contramão da poesia marginal, a coloquialidade tem funcionalidade e serventia. É uma apropriação da linguagem cotidiana em que a forma e o conteúdo comentam-se reciprocamente gerando maior taxa de informação.
O poema “anúncio”, um misto de colagem de publicidade jornalística com clímax aos moldes dos contos à la Poe, com o rasgo da ironia mais gritante, é um exemplo:
aluga-se
quarto
pra casal
homem
e mulher
sem vícios
mobiliado
com cama
criado-mudo
bíblia e um
trinta e oito
carregado
na gaveta
Não bastasse a bíblia e o trinta e oito repousarem juntos na gaveta do criado-mudo, ele ainda está carregado. Ou seja: mudo fica o leitor, sentindo-se imobilizado – ou mais um móvel no ambiente do anúncio. Nova ironia: lembre-se que um dos sentidos de anunciar é prenunciar.
Mas se há algum prenúncio neste livro, ele advém da observação, anotação e revelação dos fatos. Férias na Disney é um livro pitoresco, no sentido de pictórico. É um livro do olhar, da visão. Não é um grande mergulho no mundo interno das pessoas, suas angústias, dúvidas, hesitações.
Mesmo no poema “gatilho”, em que relata um suicídio, tudo é asséptico. Até o final trágico é revelado, e resolvido, num verso e numa palavra. Depois de tomar veneno de rato, o marido
abraçou aquela que foi
sua companheira por vinte anos
na tristeza na doença na morte
que os separe
amém
e enfiou pela primeira vez
o dedo no próprio
cu
A caracterização da interioridade das pessoas dá-se mais pela descrição de suas circunstâncias exteriores. Raramente os sentimentos são apresentados per si.
No geral, há um radar narrativo colhendo imagens na Disney, ruas, praia, cafeteria, frente à pizzaria, avião, praça de alimentação e lugares não nomeados – mas com ações bem definidas. O que acaba ampliando o alcance metafórico do poema.
O retrato do país, hoje, é traçado em cinco palavras no poema “você não acredita”:
o meu dentista
também entrega
pizza
Concisão, ironia e rigor determinantes de uma inversão de valores. Visto como uma mancha gráfica, o poema desenha uma bandeja com a pizza embaixo. O incômodo visual é isomórfico ao incômodo semântico. Cabe ao leitor agir como coautor do poema e, consequentemente, do mundo, resolvendo o incômodo: utopia da poesia.
Poemas que se abrem com cena ou diálogo em andamento são outro procedimento de que se vale o poeta. Isso pega o leitor de jeito e o enreda no poema sem maiores firulas. “açougue” é assim:
não
não
o que ensinei naquele vídeo
foi a desossar leitão inteiro
só isso
como posso ter culpa do que
aquela molecada aprontou?
rejeito
nego
recuso
afinal
todo mundo gosta de assistir
barriga de bicho sendo aberta
Para depois continuar num delicado jogo de /f/ e /a/ e /i/
quando faca afiada de lâmina fina
corta superficialmente as costelas
tiradas osso a osso a osso a osso
é como se eu pegasse as cédulas
desviadas de nossas mil estatais
e escancarasse o sistema podre
berrando
vagabundos
canalhas
o porco escovado ao vivo
com suas miudezas flácidas
a coluna vertebral já extraída
garras ósseas feito crustáceos
dedos em menstruação suína
zurro
suado
mexido
quando foi a última vez que
você saiu de casa sem medo?
hein?
quando?
faz tempo?
E segue o poema para mais adiante anunciar:
Mas nunca nunca podia pensar
Que essa molecada tão jovem
Faria uma barbaridade dessas
Jesus
Tão menininhos tão menininhos
Meus sentimentos à família
Lamento
Mas e daí?
Sua linguagem coloquial, direta e clara às vezes pode nem parecer poética. Mas o ritmo, marcado pela forma como o poeta corta os versos, imprime a musicalidade a que todo poema aspira ter. Sem contar o uso de assonâncias (sequência de vogais abertas, fechadas ou nasalizadas com determinado propósito) ou de aliterações (consoantes, com a mesma finalidade) deixam ver claramente que o poema possui rico substrato musical.
Embora os “recursos literários tradicionais” parecem não estar nos projetos deste livro. O poeta, até nisso, decidiu inovar. A poeticidade está em novos procedimentos, como estamos vendo.
Ainda que Bruno Molinero não se considere poeta, embora seja um estudioso da linguagem poética, sua poesia está aqui para desmenti-lo. Em mais um depoimento a Walter Porto, como nos citados anteriormente, declara: “Suponha que além de trabalhar em jornal eu goste de fazer cadeiras. Por mais que no meu tempo livre eu estude isso, faça cadeiras e as pessoas até elogiem as minhas cadeiras, a pergunta é se isso me faz um marceneiro. Eu acho que não. Poeta é o Manuel Bandeira”.
A estrutura das premissas é verdadeira, mas elas, em si, são falsas. Ao invés de um silogismo temos um sofisma. Tanto que a própria conclusão não é um “logo”, mas um “acho”. Risos.
Portanto, podemos afirmar, diante do lido e demonstrado, que com Férias na Disney, Bruno Molinero firma-se como um dos mais expressivos poetas da nova geração da poesia brasileira contemporânea.
Publicado no CORREIO DAS ARTES, suplemento literário do jornal A União de João Pessoa-PB, de 28 de março de 2021, p. 27-29, na coluna Festas Semióticas, do autor.