Parapsicologia da decomposição, de Ademir Assunção

Amador Ribeiro Neto

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Ademir Assunção (Araraquara-SP, 1961) é poeta, contista, romancista, músico e jornalista. Em poesia publicou: LSD Nô (1994, 2ª edição em 2014), Zona Branca (2001, segunda edição em 2006), A musa chapada (2008, em parceria com Antonio Vicente Pietroforte), A voz do ventríloquo (2012, Prêmio Jabuti – primeiro lugar), Tempo instável na tarde dos anjos desolados (2011), O Caio e o Cuio (2013, infantil que comentamos nesta coluna), Pig Brother (2015), Até nenhum lugar (2015). Parapsicologia da decomposição (Juiz de Fora: Espectro Editorial, 2017) é sua mais recente publicação.

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A Espectro Editorial tem se caracterizado por publicar autores que primam pela excelência de qualidade. Parapsicologia da decomposição faz jus ao rigor da editora.

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Com epígrafes de Chico Science (canção “A cidade”) e de João Cabral (poema “Psicologia

da composição”) a plaquete de Ademir Assunção anuncia a que veio: tomar a poesia como corpo ativo da cidade, da vida humana, da linguagem. Por isso mesmo vale-se de vozes polifônicas com diferentes dicções e uma só direção: denúncia da violência /canto de amor à vida.

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O poema “não tem trema, não tem métrica / não tem esquema”, porém “tem treta com a polícia / tiros na surdina das noites / sangue, urina, esperma”. E a voz do eu-lírico anuncia: “vamos de parte em parte”, “sim, por partes / que todos sabemos / a vida é breve, / e o que sobra é arte, / se tanto, / gesto pleno de espanto”.

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Com espanto e sem pressa adentramos uma “terra devastada”, tsunami de fraturas (sociais e pessoais) expostas.

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Fundem-se no poema a realidade e a sua expressão, a mineralidade cabralina e o caldeirão manguebeat. Afinal, “não há pureza na palavra / bala”. O enjambement craveja o substantivo “palavra” com a sugestão de várias significações. Para, enfim, perfurá-la com o tiro da violência.

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Mas “a palavra pele / incita a música, a flauta vértebra”. E aí o poeta invoca a companhia outro poeta renitente: Maiakóvski: “De corpo a corpo verta a alegria. / Esta noite ficará na História. / Hoje executarei meus versos / na flauta de minhas próprias vértebras”.

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Em Parapsicologia da decomposição, Ademir canta e decanta o corpo. Canta ao tomá-lo como mote. Como metáfora da poesia. Decanta-o ao separar-lhe o que é impureza. As misturas de asfalto e sujeira ao corpo que se esfacela, esfarela, derrama, decompõe: “pele viva sobre o asfalto pedra / (a exatidão da palavra / fóssil), / (o engenho da palavra / agronegócio)”.

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O suplício do corpo de um indivíduo é o suplício coletivo de uma nação arruinada, com “bananas esquecidas na geladeira, / morangos mofados na fruteira”.

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A poesia, que aqui se apresenta como poesia-denúncia, nem de longe é a poesia digestiva, fácil, didática e panfletária. É a poesia-valise: linguagem-bomba que explode ao contato de coração e mentes desassossegados. Antes: em ebulição.

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Esta verve o poeta já revelara em A musa chapada e em A voz do ventríloquo. Agora, enfatiza proposta e a linguagem num poema-síntese, minimalista e, como sempre, fértil em intertextualidades com outros artistas – da palavra, da canção, das artes plásticas.

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O poema de Ademir percorre o chão de asfalto e salta no ar, onde “aviões colidem no céu / de brigadeiro”. Um bom exercício musical é ler o poema em voz alta enfatizando os enjambements, quer seja, os versos que vão buscar sentido (rítmico, sintático, semântico) na linha seguinte do poema.

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Uma explosão de emoções crispa-se no corpo do leitor e do ouvinte. Ambos se contraem. A poesia tem destas maravilhas nos versos dos grandes poetas: arrancam com a mão a emoção de nosso corpo todo. Jogam-na no ar, em explosões de agonia, prazer e delírio.

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Beleza que o significado, pleno de significâncias, associado à forma do poema, proporciona.

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A vida também explode “na telas do computador”, onde “se trava uma guerra / contra a morte dos líquidos / no corpo ainda vivo”. Corpo ao sol, lixo descartado. Mas ainda vivo. Na tela do computador há uma esperança: palavras dançam e uma “ninfa febril” sobe aos céus, carregando Hagoromo, seu manto de plumas.

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Aqui, o oriente encontra-se com o ocidente. A vida com a morte. A tragédia com a busca de sua superação. E o leitor convulsiona-se: o processo de composição do poema não é o da acumulação, da organização linear. Antes: é a desconstrução, metáfora da decomposição do corpo atingido pela bala. “A camisa vazia / vestia um vivo / antes do zumbido da bala”. E ao final desta parte: “Não só a camisa / mas a calça também vazia”.

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Na penúltima parte do poema, voo, asa e bala descrevem o percurso do tempo e da morte. A vida é alçada enquanto (como) pergunta / dúvida / questionamento: “a morte / do vivo / sem a bala?”.

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Na parte final, pulso e pulsação – marcações de ritmo – revestem-se de novos redimensionamentos e convidam o leitor a reinventar a trajetória da bala, da vida, poesia, da História.

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Uma parte do paideuma deste poema: Cabral, acima de tudo. Chico Science, o fundo lítero-musical. T. S. Eliot, a dureza da terra devastada: memória e poesia. (Em tempo: nova e rica tradução de Gilmar Leal dos Santos: A terra árida). Drummond na revivificação do fóssil, míssil, istmo, espasmo e áporo. Haroldo de Campos, Caio Fernando Abreu, Artur Bispo do Rosário: rosácea de afinidades sincrônicas.

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“Saio do meu poema / como quem lava as mãos”: Cabral. “Entro no meu poema / como quem suja as mãos”: Ademir.

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À releitura de Psicologia de composição. À leitura de Parapsicologia da decomposição.

 

5 comentários em “Parapsicologia da decomposição, de Ademir Assunção

  1. Deu saudade das suas aulas. Aquele papo gostoso sobre a música popular brasileira. Aquele aprendizado que não tem preço. Seus comentários sempre refletem a verdade do livro. Abraços

  2. Amador, de volta! Que maravilha poder ler suas leituras críticas. As plaquetes da Espectro Editorial definitivamente marcou uma ótima experiência editorial e que no futuro, espero, que alguém possa estudar essas edições, digamos, meio clandestinas. Curiosamente plaquetes andam na moda. Aproveito para dizer que sua leitura sobre os poemas do Ademir foi certeira, precisa e explicativa como mostrar, por exemplo, um poema de linhagem política e social. Parabéns. Me permito reproduzir um poema meu sobre a questão da sujeira:

    Não. Não saio do poema
    de mãos lavadas, peito fechado.
    Saio aberto a tudo, sujo, sem máscara,
    do corte, do apurado – palavra ou ferida.
    Tudo é nítido e tudo vira manhã sem véspera
    e se fere ou fezes, amor ou flor,
    não garante o poema, mas a camisa de força
    que controla a sua dor

    Não está no meu livro Via Férrea – Cosac Naify.

  3. Que alegria ler uma resenha assim, escrita com a alma e a alegria de quem ama a poesia. pudessem todos os poetas ser lidos dessa maneira: em música e acordes, a poesia retirada do seu descanso encontra na voz do crítico a devida plasticidade e o devido voo que só acontece quando ela encontra seu generoso leitor. Boa nova o retorno da Augusta poesia.

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